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quarta-feira, janeiro 11, 2006

RALLY DAKAR 2006 -11º DIA: POR CIMA DO DIA TRÁGICO.




Repórter acompanha de helicóptero a etapa na qual Andy Caldecot morreu, Isidre Esteve sofreu traumatismo craniano e Klever Kolberg abandonou a prova

Os jornalistas que cobrem o Dakar de avião têm o direito a um ou dois dias de helicóptero durante a prova. A escolha é aleatória, quase um sorteio. O meu dia foi ontem, segunda-feira, na etapa entre Nouakchott e Kiffa, na Mauritânia. O helicóptero levanta vôo cedo, às 7h, pouco depois da largada das motos. A aeronave, pilotada por Allain Ricciardi, que também é comissário do Dakar entre os carros, é uma das dez que sobrevoam o deserto. A função de Allain é monitorar a prova lá de cima. O visual pela janela fascina. O deserto não tem fim. Em se tratando de Mauritânia, as dunas estão por todos os lados. A luz dos primeiros raios de sol deixa tudo dourado e já começa a esquentar a cabine.
Hábil, como se estivesse de bicicleta, Allain faz o primeiro pouso do dia. As hélices levantam areia suficiente para erguer um arranha-céu. Segundo antes de tocar o solo, ficamos imersos em uma tempestade de areia. A aterrisagem aconteceu no ponto da largada do trecho cronometrado do dia, a poucos quilômetros de Nouakchott, a capital da Mauritânia. O brasileiro Jean Azevedo, da Equipe Petrobras Lubrax, já havia largado. Acompanho a arrancada de Cyril Despres. Logo na primeira duna, o francês tira as duas rodas do chão e arranca aplausos da torcida, formada por europeus fanáticos por rali e por habitantes locais. O salto (desnecessário?) de Despres dá a impressão que a contusão na clavícula não é daquelas que pode tirar o campeão do Dakar 2005 do páreo. Há até quem diga que é 'fita'.
Quando voltamos ao ar, logo somos surpreendidos por acenos de pilotos parados sobre uma duna. Um deles está estatelado no chão, com a moto caída logo ao lado. Allain empunha o manche e faz um pouso quase em queda livre. O motociclista 103, Jordi Ingles, da Espanha, respira com dificuldade. Tosse muito. Está consciente. Em cinco minutos, o helicóptero médico pousa. O diagnóstico não demora. Após usar tesouras para tirar parte da jaqueta e da calça do espanhol, a médica assegura: "Problemas na bacia e costelas quebradas". Ela fala como se anunciasse a hora do almoço. Está acostumada a estas situações. Calcula atender pelo menos meia dúzia de acidentados por dia. O acidente de Jordi é comum. Diz que acaba de atender outro acidentado. "Fêmur quebrado". Ajudo a colocar o espanhol na maca inflável e a transportá-lo até o helicóptero que o levará de volta a Nouakchott.
Ficamos ali sobre a duna onde Jordi deu adeus à prova. O Mitsubishi de Stephane Peterhansel aparece voando alto e deixa o buggy de Thierry Magnaldi para trás. Logo depois, acompanhamos a atolada espetacular do Volkswagen Touareg de Mark Miller. Dez minutos se passam e o norte-americano, depois de perder mais meio minuto para urinar, segue em frente.
Nova decolagem e uma hora depois pousamos no segundo posto de controle (PC) para reabastecer o helicóptero. Acompanhamos a passagem de motos retardatárias. Os pilotos que ainda passam por lá são os menos experientes. Estão exaustos, parecem zumbis sobre as motos. Vislumbro o perigo que é deixa-los seguir em frente e fica claro porque tantos e tantos caem e fraturam pedaços do corpo. Ao mesmo tempo que formulo este pensamento, surpreendo-me com Allain. Ele sai correndo de fininho, embarca no helicóptero e desaparece no ar. Minutos depois, chega o motivo do desespero discreto do francês. Andy Caldecot está morto. Quando os helicópteros chegaram ao local onde o australiano se acidentou, não havia mais nada a ser feito. A notícia muda o clima entre o pessoal da organização no PC. Silêncio. Os pilotos que chegam não sabem de nada. E nem são informados.
Estranho o "desaparecimento"do piloto Klever Kolberg. Ele ainda não passou pelo PC2. No final do dia, viria a saber que o brasileiro nem chegou a largar devido a problemas no carro. Ele vinha subindo de posição dia a dia. Chegou a ser o 13º na classificação geral e o 5º na categoria T1, na qual competem carros a gasolina com preparação livre. Ainda do chão, vejo o caminhão Tatra da equipe Petrobras Lubrax despontando no horizonte. Vem forte, na segunda colocação, atrás apenas de Vladmir Chaguin, o russo que só perderá o título por milagre. André Azevedo, Maykel Justo e Mira Martinec lutam para chegar ao pódio.
Allain chama para nova decolagem. Voamos a cerca de 100 metros de altura. Mesmo os caminhões tornam-se minúsculos lá embaixo. Quilômetros antes do terceiro PC, sobrevoamos uma cadeia de dunas, verdadeiro atoleiro. Um imenso mar de areia aprisiona dezenas de competidores. Uns vão, outros voltam... A navegação parece não importar mais. O negócio é sair daquele inferno. Motos, carros e caminhões juntam força contra o deserto. No (relativo) conforto do helicóptero, é possível traçar o melhor caminho para os competidores. "Se aquele motociclista estivesse andado 30 metros a mais antes de entrar à direita naquelas dunas, já teria saído de lá", imagino. "Como aquele carro foi parar ali? Bastava ter entrado à esquerda um pouquinho antes", penso. Lá de cima, fica fácil navegar. Apesar de monstruoso, o deserto parece mais domável.
Pelo rádio, sempre em francês, novo chamado chega ao fone de ouvido dos tripulantes. "Piloto número 196 caído no km 450 precisa de auxílio médico". Allain segue para lá. O italiano Marco Capodacqua chora. "Não é só pela dor que choro. É porque agora, quando ia começar a parte menos difícil do Dakar, vou ter que abandonar". Capodacqua bateu com o pé em uma erva de camelo (vegetação rasteira e dura comum na Mauritânia). Nada grave: ligamentos do tornozelo rompidos. O piloto conta que o pequeno acidente aconteceu 30 quilômetros antes, mas ele prosseguiu até não suportar mais de dor. De helicóptero, o italiano segue até o PC 3, onde será tratado. Eu e os demais passageiros ficamos esperando no meio do deserto até o retorno do helicóptero, cerca de duas horas depois.
Quem vencer o derradeiro trecho da especial mais longa e dura do Dakar 2006, está com o pé no Lago Rosa. O caminhão de André passa por nós. Passa também o brasileiro Bernardo Bonjean, estreante na prova. Ele parece bem. Pára sua KTM e grita: "Só paro em Dakar". Sabendo da baciada de acidentes do dia, tento passar ânimo e força para Bonjean. Sem informa-lo de nada, como se fosse um técnico, peço que tenha atenção redobrada. Allain vem nos resgatar e traz outra notícia que faz do 9 de janeiro, um dia ainda mais trágico. Além da morte de Caldecott, outro motociclista, o espanhol Isidre Esteve, que era o vice-líder da prova, foi ao chão. Braço quebrado, ferimentos profundos no abdome e traumatismo craniano. Parece não correr risco de morte.
O sol começa a se despedir. Sorte nossa helicópteros não voam à noite no Dakar. Sinto muito pelos pilotos que estão prestes a passar a noite e a madrugada (caso de Bonjean) no deserto. Mas o próximo pouso de Allain é no acampamento. O clima é outro. Não se vê mais aquela descontração do dia anterior. Caldecott levou a paz com ele. Hoje, a etapa das motos foi cancelada. Amanhã, a vida continua.

Henrique Skujis, de Kayes - Mali
Fotos: Motorsport

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